sábado, 30 de maio de 2009

Trechos

O livro está dividido em duas partes; 11 capítulos na primeira parte e 44 capítulos na segunda.
Eis alguns trechos escolhidos aleatoriamente...

Parte I - Pretérito Imperfeito


"Meus irmãos mais velhos costumavam me dizer que na fase
mais festiva da família eu ainda não existia. E não escondiam
o cunho sádico desta informação. Naquele tempo — “bons
tempos”, diziam — todos se reuniam em torno do avô materno
para os banquetes dominicais na sua fazenda ou no seu palacete,
em Juiz de Fora. Meu avô, juravam os seus contemporâneos,
atraía as pessoas muito mais por seu carisma do que propriamente
o seu vasto patrimônio. Sua morte, no início de 1964, foi um forte
golpe que daria início ao desmembramento da família. No final daquele
mesmo ano, nasci para testemunhar o que viria a ser o início
da ruína financeira."


Parte II - Bem-vindo à América

"(...)
Para se entender o problema dos táxis em Nova York, é necessário
explicar a geografia da Grande Nova York, que é formada
basicamente de cinco distritos: Manhattan, Queens, Brooklyn,
Bronx e Staten Island. Cada distrito é composto por seus respectivos
bairros. Manhattan tem, por exemplo, Harlem, Downtown
(centro), Chinatown, Village...
(...)
Pois Manhattan monopolizava todas as atenções de Nova
York. Tudo acontecia lá, naquela ilha de 21 quilômetros de comprimento
por três e meio de largura repleta de arranha-céus do
Central Park para baixo. A frenesi que movimentava milhões de
dólares diários em turismo e negócios fazia da ilha um formigueiro
de carros e pessoas. Apesar da fartura de linhas de metrô; apesar
de quase a metade dos carros de Manhattan serem amarelinhos, os
taxistas não conseguiam atender à grande demanda ditada pela
velocidade dos negócios. Era muito comum ver as pessoas paradas,
por minutos, com o braço estendido na beira da calçada enquanto
passava um rio de amarelinhos ocupados. Assim, para os motoristas
dos amarelinhos, só Manhattan interessava. Os outros distritos
então, como Queens, ficavam praticamente abandonados pelos
táxis amarelos — cabendo aos car services suprir esta falta."

***

"O valor cultural daquela minha viagem era notável também
pela observação de alguns hábitos, necessidades e conceitos que,
ali, teriam que mudar. Eu costumava, por exemplo, fazer um
desjejum pela manhã. Para isto, em qualquer cidade brasileira bastava
recorrermos à velha e boa padaria. Procurei alguma perto de
casa. Em vão. Assim, dei-me conta de que as panificadoras, no
Brasil, eram frutos da herança portuguesa; era um patrimônio nacional
que reputava a padaria quase que como uma sacramentada
repartição pública que praticamente inexistia nos EUA."

***
"O valor do aluguel obviamente variava conforme a localização
do imóvel. Teoricamente, a aproximação com a ilha de Manhattan
— onde os aluguéis eram mais caros — deveria ser fator determinante
para a valorização. Mas o que acabava pesando mesmo era
a regra geral que valia para qualquer grande cidade do mundo: a
proximidade com as estações de metrô, então um dos fatores que
mais pesavam na valorização do imóvel."

***

"Resolvi tentar a graxa — termo genérico que servia também
como eufemismo para a estigmatizada expressão 'engraxate'."
(...)
me levou até a calçada em frente à loja e me apontou, dali, o
letreiro de um outro shoe repair mais abaixo, do outro lado da
Lexington. Disse que aquela loja era recém-inaugurada e que ali
poderia ser mais fácil de se conseguir trabalho. Chegando lá, eu
deveria procurar o engraxate Gugu.
(...)
Quando soube que era Edílson quem tinha me mandado ali, Gugu
esticou seus lábios concomitante com um não reprovador que fez
com a cabeça. E comentou:
— Ele sempre faz isso!
Depois de terminar o serviço e receber cinqüenta centavos de
gorjeta, Gugu, com jeito educado e efeminado, revelou, numa
entonação que demonstrava distanciamento, que Edílson era seu
irmão. Explicitando sua reprovação contra a total falta de solidariedade
entre os brasileiros, ensinou-me o procedimento correto
quando fosse tentar algum emprego:
— Vai sempre direto no patrão... Se você pedir ajuda pra brasileiro
aqui, não vai conseguir nada em lugar nenhum... esse povo
não ajuda ninguém!"

***

"As sextas-feiras eram dedicadas à cocaína dentro de casa. Além
de Bob e Tim, juntara-se à farra o próprio Edílson, o da graxa. Esparramados
nos colchões do quarto, consumiam cocaína, cerveja
Budwaiser e às vezes também maconha. Acomodado num canto,
eu os observava com sádica curiosidade cada cafungar daquele pó
branco. O ritual iniciava-se naturalmente com a compra da droga,
que era muito fácil de se conseguir em pequenas mercearias de fachada
comandadas por negros, onde o próprio caixa entregava a
mercadoria. Ronaldo, por exemplo, costumava comprar sua maconha
na mercearia localizada na Broadway de Queens com a rua
51. Mas para conseguir comprar, o cliente usava uma espécie de
senha para pedir ou tinha que ser indicado por alguém. Ou então
tinha que passar confiança ao traficante que, com a experiência,
tende a adquirir um sexto sentido para distinguir um viciado de
um policial à paisana. Tim costumava comprar uma peteca de cocaína
por quarenta dólares de um hispânico que fazia ponto na
Broadway com a Roosevelt. O preço dos produtos era rateado
pelo grupo, sendo que Tim pagava mais barato sob a alegação de
que gastava gasolina para “procurar” o traficante".

***

"Com o guia ao meu lado, não havia dificuldades. Porém, imaginei
o quanto poderia explodir a paciência dos passageiros se estivesse
sozinho. Ronaldo então revelou que, quando iniciou no
táxi, aprendeu um eficiente truque para um taxista novato não
fazer feio diante dos clientes (...)."

***

"Naquele mesmo sábado, à noite, até para quebrar a tensão
preliminar, Zé comprou algumas cervejas para brindar a chegada
dos novos moradores. Tavico, ex-jogador profissional de futebol,
era quem tinha as histórias mais sensacionais para contar — inclusive
do seu bate-boca com Tom Jobim no banheiro de um hotel
na cidade de Guatemala."

***

"Tavico resolveu levar seu irmão mais moço Zé — que também
jogava futebol — para tentar a sorte em Guatemala. Mas,
com pouco dinheiro, fizeram a viagem por terra. Nesta parte da
história, foi Zé quem começou a narrar.
Quase chegando em Guatemala, passaram por El Salvador exatamente
no momento em que eclodiam violentas batalhas entre revolucionários
e contra-revolucionários. Confundidos com “gringos”
em San Salvador, o quarto da pensão onde estavam foi violentamente
invadido por guerrilheiros armados. Zé contou os horrores
que ele e o irmão passaram nas mãos daqueles adolescentes
que lhes miravam armas pesadas; mandavam confessar o crime
que eles nem entendiam. Neste momento Tavico tomou as rédeas
do relato para enriquecer a dramaticidade:
— Você não sabe o que é ficar contra a parede e sentir o cano
gelado de uma metralhadora encostada no seu pescoço; a sua vida
por um fio nas mãos de um menino!
O que salvou os irmãos não foi o bom espanhol que Tavico
falava — até porque a guerra era entre eles mesmos. A salvação viria
de uma realidade que Tavico e Zé conheciam por alto, mas não
com tamanha profundidade"


***

"Aparecida era moça vivida; já tinha morado em Nova York
dois anos antes, quando trabalhou como go-go girl — como
eram chamadas as moças que dançavam de topless nos bares conhecidos
pelo mesmo nome. As brasileiras monopolizavam a profissão
de go-go girl em Nova York. Duas delas — uma carioca e
uma belo-horizontina — chegaram a morar na casa de Zé pouco
antes de Ronaldo e eu nos mudarmos. Elas, que faturavam de
100 a 150 dólares por noite, haviam confessado que a presença
de um brasileiro no bar trazia um constrangimento como se fossem
vigiadas por um parente. E não eram as únicas. Muitas gogo-
girls brasileiras — algumas até casadas e mães de família —
eram de classe média e mentiam para os parentes no Brasil sobre
sua verdadeira profissão. No caso das duas ex-moradoras da
casa de Zé, elas diziam para seus pais que ganhavam a vida em
Nova York cuidando de idosos. Mas tal mentira não era exclusividade
das go-go-girls. Grande parte dos brasileiros — engraxates,
dichas, faxineiros, operários etc. — costumavam esconder tal
condição para seus patrícios no Brasil, forjando profissões que
consideravam mais nobres. Chico, um engraxate amigo de Zé, se
inspirou na verdadeira profissão deste para mentir aos seus amigos
no Brasil: dizia que trabalhava num escritório de importação
e exportação no Empire State. Um outro amigo de Zé, o carioca
Robertinho, que tinha green card e trabalhava como operário na
construção civil, bolou uma mentira extensiva aos seus propósitos
libidinosos: em suas visitas anuais ao Rio de Janeiro, dizia às
mulheres que trabalhava como olheiro numa poderosa agência
de modelos de Nova York. Esta era a explicação para o material
que Robertinho costumava exibir orgulhoso nas festas de brasileiros:
um pequeno álbum de fotografias recheado de moças nuas
as quais, sedentas por uma carreira de modelo no estrangeiro,
entregavam-se de corpo e alma ao 'olheiro'."

***

"Aquela oficina de Miltinho funcionava também como garagem
das seis limusines de Paulino, o brasileiro que ficou famoso no Brasil
por seu sucesso naquele empreendimento. Eu o conhecia só de
jornais e revistas. O galpão pertencia a uma velhinha que também
era proprietária do sobrado ao lado, em cujo térreo funcionava o
escritório da Paulino Limousines".

***

"Era comum os car services servirem involuntariamente aos traficantes,
principalmente os colombianos. Com a experiência, não era difícil
perceber no passageiro algumas atitudes suspeitas como, por
exemplo, o ato de visitar mais de um endereço; os seus olhares de pesquisa
através dos vidros do carro; a pausa no falatório quando passávamos
pela polícia... Mas, ancorado na minha própria condição profissional,
eu pouco me importava com aquilo tudo — até porque os
traficantes, normalmente, eram generosos na hora de pagar."

***

"Ronaldo ofereceu-lhes corrida, eles se entreolharam rapidamente
e entraram no carro. Perguntados sobre o destino, os passageiros
fizeram um silêncio reflexivo e um deles respondeu que desejava ir à
Northern Boulevard com a rua 47. Enquanto descia a Broadway,
Ronaldo sentiu o cano encostando na sua cabeça. Pediram seu dinheiro
e ele entregou os 94 dólares que tinha. Pegaram o dinheiro,
arrancaram-lhe os óculos, a carteira com os documentos e o par de
tênis. Esta era uma tática maldosa para dificultar a reação da vítima.
E fugiram com o carro, deixando Ronaldo só de meias e com a roupa
do corpo em meio à chuva gelada que caía naquele momento."

***

"Infelizmente, a realidade da sociabilidade dos brasileiros em Nova
York não era aquela que se esperava de um compatriota num
país distante.
(...)
O meu primeiro contato acidental com brasileiros em Nova
York foi ainda na minha primeira semana em Nova York. Entrei
numa das lojas da rua 46 e, olhando as mercadorias expostas, percebi
que duas moças, olhando a vitrine do lado oposto, comentavam
em português sobre o preço de um walkman. Admirado, voltei-
me para elas e perguntei — algo óbvio, mas inevitável — se
eram brasileiras. A reação preliminar das duas foi de, em súbito silêncio,
me encarar com feições sérias de quem acaba de ouvir um
desaforo de estranho. Até que uma puxou a outra pela mão para
sair dali, enquanto dizia: 'brasileiro... cai fora!'."

***

"Todo mundo que mora em Nova York já viu algum
famoso. Mas para a maioria dos brasileiros, só há chance de
reconhecer os famosos do Brasil mesmo. No meu caso, além de
Carlos Alberto Torres e Martinho da Vila, avistei, depois de um
show de Caetano no Town Hall, Elba Ramalho, Maurício Mattar
e Sônia Braga. Por parte do cidadão nova-iorquino, parecia que
algo de presunção e arrogância permeava seu caráter e que o dispensava
de praticar tietagem dentro daquele território de obrigatória
trégua. E este “acordo tácito” parecia contaminar os turistas e
os próprios paparazzos quando inseridos no glamour daquela vastidão
veloz e histérica."

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