segunda-feira, 1 de junho de 2009

Prólogo

Cheguei da aula ao final da tarde e percebi, pela já tradicional
tensão silenciosa da casa, que Ronaldo tinha aprontado mais
uma. Desta vez, foram parar no lixo todos os nossos mantimentos:
feijão, arroz, trigo, macarrão... A maninha Sula foi quem testemunhou
toda a cena. Disse ela que o irmão mais velho, após o feito,
voltou-se “com cara de dopado” pra cima da mamãe e berrou:
— Isso é pra tu aprender, filha-da-puta!!!
Nunca neguei o autodidatismo da sua oratória que lançava
mão, por exemplo, do “tu”, tão raro em nossa região, nas vezes
em que desejava distanciamento psicológico do interlocutor. Pois
que, em sua lógica, tal pronome, além do ímpeto sonoro próprio
das consoantes explosivas — tu! —, sugeria também uma esterilização
no trato com a pessoa — esta assim reduzida ao mínimo
fônico que incorporava o mínimo interpessoal.
Era só o começo... Reza também a história familiar que, um
dia, o nosso primeiro carro zerinho apareceu banhado de ácido
sulfúrico. Na época, o que mais doía era ter que sair mentindo
para as pessoas; dizer que aquilo era coisa de moleque.

***

Enquanto o taxista chinês guiava pela Northern Boulevard, no
banco de trás eu seguia sozinho — silenciosamente sozinho — remontando
aqueles flashes ruins que, um dia, sonhei esquecer. Mas
não deu. Naquele momento era providencial pensar nisso; providencial
até como forma de afugentar qualquer peso na consciência
pelo que eu acabara de fazer...
Mas, enfim, ao menos eu voltara a notar graça até naquelas
imagens plasticamente pouco inspiradoras: fossem as luvas pretas
do chinês que deixavam desnudas suas falanges distais; ou fossem
as nuvens cinzentas que sangravam gotículas de chuva naquele
início de outono nova-iorquino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário